‘A Minha Copa’ por Nando Reis

Havíamos mudado para a casa nova no Butantã, ali na entrada da USP. Eu tinha 11 anos. Na mudança, perdi um caixote precioso com parte das minhas coisas prediletas: meu time de futebol de botão feito de celuloides de mostrador de relógio e pintados com esmalte (e o do meu pai, de verdadeiros botões de roupa) e o álbum de fotografias que acompanhava a edição especial do "Let it Be", dos Beatles, que ganhei de minha avó.

Mas levava comigo o álbum de selos da Alemanha Oriental, minha estranha paixão que nasceu das idas com meu pai aos domingos para a praça da República. Entramos na casa nova em abril de 1974. Em junho, começaria a Copa da Alemanha.

Pela primeira vez, teria um quarto só para mim, assim como cada um de meus quatro irmãos. Pela primeira vez, tínhamos uma televisão em cores, que ficava no salão. Naquele ano também tinha começado o ginásio no Nossa Senhora do Morumbi.

Para chegar à escola, todos os dias eu passava em frente ao Cícero Pompeu de Toledo, o estádio do São Paulo. O futebol começava a construir sua coleção de episódios marcantes em minha vida.

Da Copa de 70, guardava recordações esparsas e difusas: a comemoração da vitória contra a Inglaterra nos ombros do meu pai na rua Augusta; e a chopada do tri, na casa do tio Carlos. E o primeiro exemplar de Cebolinha.

A paixão pelos selos sisudos da Alemanha Oriental, graças à minha completa ignorância do que ocorria no cenário político, se transferiu naturalmente para o lindo emblema do uniforme branco de calções pretos da dona da casa.

Assim, a Alemanha Ocidental se tornou o meu segundo time. Não havia, da minha parte, qualquer critério a não ser empatia visual e estética. Me chamava atenção o lateral esquerdo cabeludo, Paul Breitner. Numa certa mistura infantil e onírica, transferi a idolatria que nutria por Alice Cooper para alguns jogadores que pareciam possuir a "star quality" dos astros de rock.

Assistíamos aos jogos do Brasil reunidos no salão, e acho que a novidade da TV em cores era mais impactante que o futebol desencantado e pálido da nossa seleção.

Pra falar a verdade, me lembro que o grande barato era jogar bola no campinho que havia em frente de casa, com os amigos recém-feitos ali no bairro. Éramos tão fissurados por jogar bola que combinávamos de nos encontrar no campo assim que o juiz encerrasse o primeiro tempo dos jogos da seleção.

A Copa do Mundo de 1974 está diretamente associada à minha descoberta pelo prazer de jogar futebol. E à possibilidade de fazer isso o tempo todo, no campinho de terra em frente de casa.

Daquela Copa, guardo um sabor de descoberta do qual sou apegado, e tento proteger de tudo que possa destruí-lo. A ela, associo a novidade da casa nova e da TV em cores, dos cabelos compridos e costeletas dos jogadores com os meus ídolos do rock’n’roll, a dissolução da geopolítica graças à ingenuidade de que desconhecia o terror dos anos de chumbo que pairavam sobre o Brasil e que permitiam que os selos da DDR estivessem estampados no uniforme do vizinho oponente, e o campinho de terra onde nasciam as paixões particulares tão distintas do pastiche do atual padrão Fifa.

Acima de tudo, guardo da Copa de 1974 a nostalgia da minha inocência.

O texto de Nando Reis, músico, faz parte da série "A Minha Copa", publicada aos domingos. Leia os textos anteriores em www.folha.com.br/folhanacopa

Por: Folha de São Paulo

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