O poeta Eucanaã Ferraz foi convidado para escrever a apresentação do trabalho ‘Jardim-Pomar’ de Nando Reis. Como o texto só está presente no envelope do LP, trouxemos ele na íntegra para quem ainda não comprou o seu disco e quer muito ler! Vale a pena conferir…
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O título Jardim-pomar toma de empréstimo uma imagem de Murilo Mendes num de seus mais belos livros, A idade do serrote. No texto de Murilo, somos reenviados ao jardim da casa paterna, que se confunde também com o paraíso, conforme a narrativa bíblica. Nando Reis parece reconstituir, com suas canções, um jardim-pomar inteiramente seu, no qual também ecoa a memória numa paisagem feita de diferentes tempos e espaços. Entre Deus, o amor, o conhecimento, a morte, a criação, o passado e o futuro, o sujeito se move como um estranho e enérgico jardineiro.
Em “Infinito oito”, ele surge multiplicado, fragmentário. Parece inútil recorrer às noções de identidade ou inteireza. Toda busca de explicação e de unidade resultaria em algo paradoxal: “Dentro de mim um corte / Um rio com mil marés / Por azar ou pura sorte / Não rezo e tenho fé”. O jogo é permanente, o sujeito é um enigma em movimento: “Fui cortado ao meio / Não juntam as metades / Um lado é espelho / O outro só reflexo”. Em todas as canções, somos colocados frente à frente com uma identidade que só se pode definir pela indefinição. Ouvimos ainda em “Infinito oito”: “Completo universo / Complexo”. Mundo distante dos binarismos, portanto: “Não é nenhum dos dois”.
A canção “Azul de presunto” é um jogo que exibe o prazer que advém da impossibilidade de definir identidades. A saúde já não se encontra no repouso da unidade: “Sou ou não sou / Eu não sei mais lembrar quem eu sou / Sou o que sou / E ninguém vai dizer quem eu sou”. Como se vê, a singularidade nasce da pura afirmação, ou ainda, de uma existência afirmativa, que aceita o enigma e faz dele uma deliciosa tautologia: “sou o que sou”. O jogo de identidades, na gravação, é também um prazeroso entrelaçamento de vozes que se confundem, se afastam e se reúnem numa câmara de ecos ou de espelhos. A levada dançante é só mais uma afirmação da leveza de um mundo que não se baseia em verdades estáveis, ideias fixas e identidades prontas.
Neste mundo móvel erguido por Nando Reis, mesmo Deus é, a um só tempo, presença e ausência. Afinal, seria impossível pensá-lo fora dessa espécie de presente total, quando todas as formas, mesmo aquelas invisíveis, atualizam-se em turbilhão: “Deus não se compreende / é o tempo motor / invisível presente / sedativo à dor / Onde você está? / Quando vai aparecer?”. E ainda: “Quando vou te encontrar? / Onde foi se esconder?”. Nem Deus significa, portanto, promessa de descanso e imobilidade. Há quem não suporte a sensação e, como um “Lobo preso em renda”, esconda-se a si mesmo em uma “camuflagem / antissuicida”. Mas há quem recuse “o fogo fácil farto de artifícios” e faça uma aposta mais alta e mais lúcida: “Não é possível que a gente não encontre um caminho / Uma forma de se entender / Você diz que chegou ao limite / Não basta o limite da vida que vai findar?”
Sim, nas aleias desse Jardim-pomar não poderia faltar a perspectiva da morte. Nando Reis não se esquiva: “A gente morre a vida é passageira/ Escorre lenta vai minguando e ‘aqui jaz’”. Mas tampouco vê na inevitabilidade o motivo de uma desistência diante do agora, e propõe: “Se vamos todos morrer / Então vamos tratar de viver”. Tal convite pode levar mesmo a uma extrema recusa da morte, à sua derrota por meio da poesia, que irrompe acima do provisório numa espécie de bandeiriano salto-imortal: “Vou pra longe procurar, vou para Pasárgada / Vou me vingar, eu vou matar o tempo e ser imortal”. Não é por acaso que uma canção – “Pra musa” – retorne, contemporânea e pop, à mitologia clássica para cantar aquela entidade inspiradora da criação artística, e então ouvimos uma aposta no tempo sem-fim que é sobretudo compromisso com o recomeço: “E nunca é igual / Não vou repetir / Não posso acabar / Nunca chego ao fim / Não há nada igual / Quando venho aqui / Não vou terminar…”. Somente a criação e o amor podem refazer as equações do tempo, remodelar seus fluxos, trapacear suas ordens, como em “4 de março”: “Tanto tempo e ainda é muito pouco / Temos mais futuro que passado”. E “Concórdia” propõe uma visão igualmente prospectiva: “A vida que ainda vamos viver / Eu e você”. Em “Água viva” deparamos com esse modo de olhar que desloca sutilezas: “Não estamos sós / Somente sozinhos”.
Assim, as canções abandonam os extremos fáceis da amargura ou do otimismo, e seguem por sentimentos mais complexos, como a gratidão, como em “Concórdia”, que afirma: “Deus que deu flor nessa água / Som às palavras / Chão pra eu pisar”, remetendo a antigas canções como “Foi Deus”, composição de Alberto Janes que virou clássico na voz de Amália Rodrigues, ou a célebre “Gracias a la vida”, de Violeta Parra.
Os diferentes estados de espírito dão uma larga dimensão humana a este conjunto de canções. E em pelo menos duas oportunidades Nando Reis se volta para a tradição da canção brasileira, como se nela reconhecesse tanto um acervo musical quanto existencial. Assim, “Como somos” vai buscar um grande sucesso de Orlando Silva, “A jardineira”, marcha-rancho composta por Benedito Lacerda (“Oh jardineira / Porque estás tão triste? Mas o que foi que te / aconteceu? // Foi a camélia / que caiu do galho / Deu dois suspiros / E depois morreu”) para se preguntara cerca da melancolia: “Ó triste jardineira / Porquê a camélia deu suspiros tão mortais?”. A canção de amor tem um belo momento em “Só posso dizer”, que dialoga diretamente com “Volta”, de Lupicínio Rodrigues (“Não consigo dormir sem teu braço”) ao declarar: “Mas não consigo dormir sem seus braços”.
Blues, rock, balada, tudo dá nas terras deste Jardim-pomar. Violões, guitarras, baixos, baterias, teclados, sopros, cordas, tudo cabe em arranjos que exploram atmosferas, volumes, texturas. E a voz, sempre, áspera em sua fala, em sua busca de paisagens. Os frutos estão aqui: som e sentido, som e absurdo, som e fúria, som e imprevistas ternuras.
Eucanaã Ferraz
Nossa,
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